RAPUNZEL

Rapunzel

Susy Ramone
 

Esta é uma releitura do conto de origem alemã dos Irmãos Grimm. A história é muita difundida entre as crianças. No entanto, esta fantasia foi reescrita com certa ironia. A própria Disney, maior empresa vendedora de fantasia adaptada, também fez sua própria releitura, em Enrolados. Mas aqui, não esperem ler a mesma coisa. O tom suave de sarcasmo, a ironia à beleza, estão contextualizados neste pequeno conto desta escritora brasileira tão criativa, que vem mostrando seu trabalho e conquistando fãs pelo Brasil.

     Do alto da torre do castelo, pela fresta da única janela, a refém da feiticeira contemplava as ondas turbulentas que morriam no penhasco.
     Há muito ela foi trancada lá, mas nunca perdeu as esperanças de reconquistar a liberdade.  A décima filha de camponeses pobres fora entregue aos cuidados da bruxa, quando ao completar doze anos de idade, tornou-se um fardo para a sua família.
     Enquanto os irmãos menores já trabalhavam para trazer algum dinheiro, Rapunzel só pensava em escovar os longos cabelos e sonhar acordada diante da lasca de um espelho que trocara por um saco de arroz. Aquela atitude deixou seus pais enfurecidos, pois trabalharam duro para juntar os grãos que alimentariam a família por pelo menos uma semana.
Certo dia, a feiticeira do castelo viu a menina sentada debaixo de uma árvore conversando com o seu próprio reflexo. Muito curiosa ela perguntou:
     − Por que conversa com o espelho, menina?
     − Não tenho muitos amigos. −  Ela respondeu.
     − Ah, entendi. E por não ter com quem conversar, fala consigo mesma?
     − Sim.
   − Rapunzel! – Interrompeu a voz grave de seu pai. – Com tantos afazeres, você fica aí papeando? Ah como eu gostaria de me livrar de você!
    A feiticeira se angustiou pela grosseria do velho e imediatamente se ofereceu para levar Rapunzel para viver no castelo. O pai muito satisfeito livrou-se da filha imprestável naquele mesmo instante. 
     Nos primeiros dias, Rapunzel sentia-se muito feliz, pois a bruxa a tratava maravilhosamente bem; mas com o passar dos meses a velha feiticeira percebeu que tinha arrumado sarna pra se coçar.
     Rapunzel não queria ajudar nos serviços do castelo, vivia escovando os cabelos o dia todo e falando com aquele pedaço de espelho. Uma parasita é o que ela era e até que aprendesse a cooperar, ficaria trancafiada na masmorra a pão e água.
     Os anos passaram e Rapunzel jamais saíra da torre. Seus cabelos estavam tão longos que podia molhar as pontas na baía ao jogá-los pela janela.
     Numa noite, enquanto olhava para o mar iluminado pelo reflexo da lua, avistou uma figura masculina emergindo da água turva.
    Ele fez um sinal para que ela jogasse os cabelos e Rapunzel toda contente obedeceu aos comandos do homem que viera para lhe salvar. Ela pensou que o seu príncipe encantado subiria pelas longas madeixas, daria fim na bruxa e então os dois fugiriam para viverem felizes para sempre.
     Ao invés disso, o cavalheiro se agarrou com força nos cabelos de Rapunzel e a puxou para baixo, onde a pobre despencou pelo abismo, encontrando a água gélida do mar nebuloso.
    O homem desapareceu como um espectro da noite e Rapunzel transformou-se em uma sereia.
     A bruxa já havia se cansado de sustentar a moça preguiçosa e fez um feitiço para que tudo isso acontecesse.
     Já que Rapunzel gostava de escovar os cabelos e de se olhar no espelho, que fosse viver no mar, então. Não são estas as características das sereias?
     Todas as noites a feiticeira escutava o canto triste vindo do mar. Uma vez por ano, colocava jóias e espelhos novos num barquinho, despachando-o pelas águas. Com certeza este mimo saia bem mais barato do que alimentar a vagabunda todos os dias.


O SEGREDO DO PATRIARCA

O Segredo do Patriarca

Tarsis Tindarsam 

Depois de ler Harry Potter, de J. K. Rowling, a leitura me inspirou a escrever algo sobre magia. Muitos leitores gostaram do tema abordado, mas foi melhor ouvir da boca de um deles que neste conto o tema 'magia' foi abordado com mais maturidade (pelas veias metafóricas) que nos livros de Rowling. É claro que fiquei feliz com o comentário, porém acho mais importante que o leitor entenda o texto do que goste da leitura. Algumas, como esta, incomodam um pouco. Este conto foi escrito em 2009 e finalizado um ano depois.

    Piava a coruja branca no galho da aveleira, as pupilas fixas em dois sujeitos envoltos pela noite. O primeiro deles usava um capuz envelhecido e subitamente a encarou. Tinha um olhar destrutivo que lampejou, ameaçador. Atemorizada, a ave buscou abrigo na beirada de uma janela. Escondida atrás de uma árvore, a coruja ouviu uma voz rascante ferir a neblina:
    ― És um tolo, Vulpino. Acreditas que podes ocultá-la? Quem a esconderia dos garbhas? Velho imundo, tua vida me pertence!
    ― Fale baixo. Não digas meu nome ― sussurrou o outro. ― Escute. Não é a criança que prometi. Vá embora...
    ― O que estás a dizer? A juventude da menina será de tenra beleza. E há séculos procuro me curar da fealdade. Sabes disso!
    ― Eu disse que entregaria uma criança. Minha neta está fora de cogitação. Nunca a terás!
    ― Não levantes o dedo para mim, porco! Uma menina nos foi prometida. O diksha se aproxima. A Sociedade a terá. ― Fez uma pausa e puxou ar como se lhe faltasse. ― Hoje o mundo é curioso. Talvez igualmente detestável. No entanto, as coisas nesses novos tempos estão a meu favor.
    O sorriso dela fendeu, expondo a fileira de molares negros.
    ― Não entendo. Do que estás a falar? ― indagou o outro, assustado.
    Outra vez o sorriso debochado rasgou-se na face escura. Sua voz gelada tinha uma ironia sutil:
    ― Os pais dela a enxotaram para cá. A notícia não podia ser melhor. Que maldita palavra ela usou?
    ― Ela quem? ― perguntou a outra sombra e olhou para trás depois do pio de uma coruja.
    ― Divórcio ― concluiu a voz modorrenta. O capuz caiu-lhe sobre a face senil.
    ― Ardilosa! Como soubeste? ― disse a voz do outro.
     Então é verdade! A menina está vulnerável. Não há laços familiares que a protejam! ― exclamou a sombra encapuzada em tom de desejo ardente, como que sentindo cheiro de carne.
    ― Ela tem a mim! Nunca ficará sozinha ― murmurou.
    ― Estás em dívida comigo, Vulpino ― Os dentes rangeram com ferocidade ― Sou serva de Mefistófeles. Conheces o poder de tal nome?
    ― Poupe a voz. O momento não é propício ― hesitou o homem, temeroso.
    ― Cumpre o pacto, ou tua doença voltará! Desta vez pior do que antes. Portanto, dê-me a menina! ― A figura salivou pelo canto da boca ao pronunciar essas palavras. Ergueu a cabeça como uma serpente prestes a atacar a presa.
    ― Vamos marcar o encontro na outra lua. Amanhã, não. Amanhã está muito perto ― a voz pausada ponderou ― Espere! Em nome de Deus! Afaste-se de mim! Não faça isso!
    A voz do homem misturou-se à brisa noturna. Os gemidos foram abafados pela sombra encapuzada, que ficou tão satisfeita que chegou a gargalhar, depois, proferiu uma canção terrível enquanto caminhava entre as árvores.

II

    Dois dias antes daquele evento, uma menina pestanejou por vários segundos, a nuca recostada no banco de um carro. Alguém a esperava numa imagem rodopiante e lenta, até que estagnasse por completo.
    ― Não precisas despertar se não quiseres, miúda. ― falou a mulher ao volante. Era obesa, sem pescoço e tinha um forte sotaque lusitano.
    Aparentemente, a menina não fez esforço para ser gentil. Olhou para fora ainda sonolenta enquanto o carro atravessava a ponte de pedra. Do outro lado, uma velha placa informava: “Vila da Nogueira da Montanha – Portugal”.
     Nas cercanias da estrada de terra, pequenos bosques sombreavam casinhas caiadas, de feitio medieval.
    ― Por que há tanta gente velha por aqui? ― perguntou a menina, intrigada.
    De fato muitos idosos moravam nas redondezas. Os velhos trajavam roupas de fazendeiro, enquanto velhinhas de faces rosadas, usando vestidos floridos, descansavam em suas cadeiras de balanço. Muitos cuidavam de seus belos jardins de cercas brancas. Enquanto o carro passava, todos observaram a menina.
    ― Pessoas comuns, querida. Preferem a vida no campo. ― responde dona Evarinta, que sorriu sobre a cara redonda. Tinha uma verruga debaixo do nariz disfarçada pela maquiagem.
    O lugar apinhou-se de árvores mortas. Naquele ponto, a natureza não era nada receptiva. A menina olhou para o lado no momento em que o carro estancou.
    Em frente ao casarão com ares de chácara, um velho apoiado numa bengala acenava para ela.
    ― Vovô, por que não foi me buscar? ― interpelou a menina, movendo-se depressa para sair do automóvel antigo. Ela achou o avô mais idoso que da última vez que o vira.
    ― Gemima, minha saúde já não é uma donzela ― o avô falou com a voz cansada.
    Não houve tempo para os cumprimentos. A garganta de dona Evarinta pigarreou.
    ― Um segundo. Perdão por fazê-la esperar. Aqui está ― o velho entregou-lhe um embrulho de papel pardo. Evarinta desviou os olhos dele e guardou o pacote no porta-luvas sem mais delongas.
    ― Não vai conferir, Evarinta Ambrósia?
    ― É desnecessário. Confio em ti, Vulpino ― a resposta dela foi áspera.
    A mulher se livrou das malas de Gemima, apressando-se para dirigir o automóvel. Não encarou nem a menina nem o velho quando ligou o carro. Então, partiu depressa e desapareceu na estrada que seguia.
    ― Essa velha gorda lhe tratou bem, minha neta? ― perguntou o avô.
    A menina fez uma careta. Ele voltou-se para a neta. Tinha um riso suave nos lábios:
    ― Evarinta soltou muitos peidos no carro?
    Gemima deu uma gostosa gargalhada. O avô rejuvenesceu, pois adorou vê-la sorrir.

    Um pouco depois, sentada sobre a cama dentro de um quarto amplo do casarão, Gemima levantou-se para se olhar no espelho. Seu reflexo era rechonchudo e desengonçado. Usava óculos de lentes grossas e botas ortopédicas. Pelas bochechas sardentas e o rosto de boneca, devia ter nove anos. Ela se achava feia, esquisita. Não queria se lembrar do Brasil, de onde viera.
    Gemima Bringel tentou esquecer os colegas da escola que, maldosos, a chamavam de berinjela. Porém, naquele lugar, algo pequenino a perturbava, tão pequeno como uma farpa entre os dedos.
    Na parede do quarto, uma rude serpente de bronze enlaçada num triângulo distinguia-se de outros objetos. Era o adorno mais sinistro daquela casa.

    Mais tarde, Gemima desceu faminta pela escada. Notou que uma panela fervia dentro da lareira. Então encheu o prato de sopa e sentou-se à mesa. O avô comentou:
    ― Tua avó Estelita foi a Coimbra, para o Décimo Terceiro Concurso de Tricoteiras Lusitanas. Volta logo. Talvez amanhã.
    ― Sinto falta dela. ― disse uma Gemima tristonha. ― Sinto falta de vocês dois.
    Avô e neta se olharam. O primeiro perguntou:
    ― Por lá as coisas não estão a ir bem, não é?
    O silêncio respondeu a pergunta. Gemima apertou os olhinhos e engoliu o choro.
    ― Vamos falar de outra coisa, está certo? ― o avô sugeriu.
    Ela afirmou com a cabeça e voltou a comer.
    ― Amanhã vamos conhecer a Quinta das Parreiras. O que tu achas? ― o avô falou, sorrindo. 
    Gemima mudou de assunto:
    ― Vovô, sempre gostei da chácara, mas por que mora tão longe da cidade agora? Por que saíram da casa de Coimbra?
    ― O ar é puro perto dos bosques. Um refúgio para os meus pulmões. ―  O velho suspirou, cansado.
    ― Não parece tão bem quanto antes, vovô. Desde que cheguei, sempre ouço o senhor tossir. Está mais pálido, também.
    ― A velhice veio para os homens, minha neta. ― O avô baixou a fronte.
     Após uma colherada de sopa, Gemima fez um comentário:
    ― Hoje visitei sua pequena biblioteca.
    O avô sorriu para ela e pensou como era importante cultivar o hábito da leitura nas crianças de hoje .
    ― Encontrei livros velhos numa gaveta debaixo da estante. ― ela completou.
    O rosto do avô ficou lívido. Havia mesmo deixado uma gaveta aberta, bem antes de a neta chegar. Um pequeno recinto onde guardava alguns segredos.
    ― Quando era pequenina, me lembro que a vovó contava muitas histórias ― recordou Gemima. ― Uma delas era sobre a Moura Torta. E acho que encontrei essa num dos livros.
    O velho tentou ficar calmo e falar do assunto como algo banal.
    ― A Moura Torta. Ora pois, sim! Lembro-me dessa história de carochinha.  Você sabia que a Moura Torta é uma história antiga de bruxa contada até hoje em Portugal e na Espanha? Surgiu na Idade-Média. ― O velho tentou disfarçar sua aflição, mas os lábios estavam inquietos. ― Chegou na época em que o povo mouro invadiu essa região da Europa. Na lenda, a feiticeira é morta cruelmente. A versão mais conhecida por aqui é aquela em que o corpo da  feiticeira é esquartejado e os pedaços jogados ao mar.
    ― Que horrível, vovô! ― Gemima  olhou, assombrada, para o avô.
    ― Tem razão. Mas há outra versão, pouco conhecida, em que essa bruxa consegue escapar da morte. Agora, termine o jantar. Tenho outras histórias de fadas para contar. E são bem mais interessantes. ― O velho sorriu, tentando desviar de assunto. Tinha algo de enigmático em seu semblante.
    ― Por que o senhor não me deu todos os seus livros infantis da última vez que foi ao Brasil? Quero esse da Moura Torta.
    O velho murmurou alguma coisa. Suas pálpebras tremeram. Um suor frio desceu até a jugular. Ele colocou as mãos nas têmporas.
    ― Na verdade, não é um livro infantil, Gemima. Deixa isto de lado. Por que diabos pegastes neste livro? ― A voz do velho parecia alterada, como se algo fosse atacá-lo.
    Gemima não entendeu porque o avô agira dessa forma. Seduzida pela história, continuou a tagarelar:
    ― Não é infantil? Como não é infantil, se a vovó contava? E que língua esquisita é a aquela do livro, vovô?
    O avô titubeou ao responder. Aquela conversa o incomodava.
    ― É latim. Um idioma antigo. Termina o jantar, Gemima. Já disse. Deixa isto de lado, miúda. ― Ele tentou falar de maneira terna com a neta.
    ― Já olhou os desenhos do livro? Espere um pouco. ― A menina então correu até a biblioteca, voltando com um tomo antigo nas mãos.
    O avô controlou a agitação,  embora seu nervosismo  fosse aparente.
    ― Está tudo bem, vovô? ― perguntou ela, sem dar tempo ao velho para responder. ― Olhe os desenhos! São muito bonitos.
    Era um livro antigo, mas bem conservado. A capa grosseira de couro tinha a mesma marca da serpente e do triangulo. No entanto, Gemima não reconhecera, pois estava bastante instigada com o conteúdo do livro, abrindo-o  mais que depressa.
    Uma ilustração de traços elegantes e escuros preenchia a página XV. Naquela figura amarelada, uma velha de rosto feioso observava contente seu reflexo em um regato. O reflexo, na verdade, era de uma bela moça pendurada numa árvore que expunha apenas a face delicada, escondida entre os ramos. Contudo, a velhaca ria, admirada, pois não percebera o seu engano: acreditava que o reflexo fosse seu.
    ― Vovó Estelita me contava essa história antes de dormir. Aqui no livro não diz, mas não acha que essa velha é a Moura Torta?
    O avô, silencioso, fitou a neta com os olhos aguados.
    ― Essa é só uma história boba, Gemima. Nas histórias de fadas, a bruxa sempre busca a formosura alheia. Uma metáfora da feiúra que tenta dominar a beleza.
    ― O que é uma metáfora? O nome de uma flor? ― Mais uma vez, Gemima não deu tempo ao velho. Sua curiosidade a fez virar a página com pressa. ― Olhe esta figura aqui, vovô!
    Na ilustração seguinte, a Moura enfiava as unhas e um longo espinho na cabeça da bela moça. O sorriso da velha era desejoso e, no rosto da moça, havia dor e sangue.
    ― Feche isso! Feche agora! ― gritou o avô, tomando à força o livro de Gemima. Ela ficou assustada.   
    O velho abraçou-se ao livro, respirando com dificuldade. O rosto suado e pálido contrastou com a escuridão da noite que podia ser vista através da janela. Gemima fechou os braços, aborrecida, e enquanto subia até o quarto, o avô quase gritou:
    ― Não vá cuscar1 o que não podes entender! ― disse, ainda abraçado ao livro. O olhar do velho escondia um inamistoso segredo. ― Essa história é terrível demais para uma menina tão pequena!
    Mas Gemima já havia sumido, deixando seu estranho avô sozinho. Esse último ficou em silêncio, até que o único ruído naquela parte da casa fosse tão somente o crepitar da lareira.

III

    No outro dia, o sol ainda fraquejava. Gemima se aprontou muito cedo para sair sozinha, mesmo que o avô não estivesse acordado.
    Desceu a escada, observando os móveis europeus. Aquele lugar devia ser mais feliz em épocas de festejos. Era um casarão bem mais aconchegante que a outra casa, em Coimbra. No entanto, visitou-a pouquíssimas vezes e muita coisa havia mudado.
    Já um pouco distante, olhou para trás. O belo casarão não estava tão  afastado. Numa das janelas, a silhueta do avô a observava. A metade de seu rosto estava encoberta pela cortina de veludo. Em ligeiro relance, o avô a olhou como se não quisesse que a neta partisse. O semblante, quase contrafeito, disfarçou-se em mistério. Por fim, ele acenou. Ainda chateada com o avô, Gemima virou a cabeça e continuou seu percurso.

    Além do verde gramado, uma suave neblina cobria as folhas viçosas das parreiras plantadas em vigas altas de madeira. Gemima se aproximou, pulando e às vezes ficando na ponta dos pés para pegar os frutos. Comeu tantas uvas que sentiu os lábios formigarem.
    Notou a neblina mais pesada à frente; e vinte passos depois, um arco de roseiras em flor delimitava outro ambiente.  Não se lembrou de ter  passado por ali quando era mais nova.
    Ao atravessar o caminho, encontrou uma extensa aléia de rosas orvalhadas; quase um túnel escuro de flores. Muito bonito, mas assustador, pensou ela. Então resolveu prosseguir. E se do outro lado alguma coisa a esperasse?
   Apenas mais flores e bosques.
   Madressilvas enfeitavam clareiras. Rouxinóis pipilavam próximos às faias mais altas. Loureiros desfolhados davam um belo aspecto sombrio ao lugar.
    Talvez ali fosse um jardim. O jardim da família Bringel, pois havia um escudo de latão cravado numa árvore negra. Gemima não conseguiu desvendar o desenho nele. Era um escudo já muito envelhecido. Nunca fora levada até aquele lugar, nem pelos avôs.
    Encantada com as malva-rosas e os fetos azulados que disputavam espaço na parca luz do sol, adentrou ainda mais o jardim.
    Caminhou entre sebes bem-cuidadas e pérgulas repletas de cachos floridos em cor púrpura. 
    Viu que no meio do bosque, numa clareira maior, um poço largo, feito de pedra, brilhava.
    Gemima se pendurou numa árvore para ver melhor todo aquele magnífico jardim. Adorava subir em árvores e nunca teve medo de altura. O poço estava a poucos metros, abaixo. Lá de cima, Gemima viu que sua água refletia não só imagens de galhos e flores: uma linda moça se afogava nele.
    Num salto pueril, a menina pulou esbaforida da árvore e alcançou a beirada de pedra do poço. Ela ficou surpresa. A moça dentro do poço tinha a mesma expressão na face.
    Gemima jogou os braços para puxá-la, porém, seus braços se fundiram aos dela. Tentou outra vez. Mas ela tateava somente a água fria.
    ― Você está bem? Precisa de ajuda? ― vozeou Gemima, desesperada. Os lábios da moça repetiam tudo o que ela dizia.
    Gemima expressou dúvida e imediatamente a moça a imitou. Gemima ficou brava, com uma carranca na face.  A moça fez a mesma coisa.
    ― Não caçoe de mim! ― a menina gritou.
    A moça também franziu o cenho. Gemima pôs o dedo no nariz, e igualmente fez a linda moça. Tudo que a menina gesticulava, a moça assim fazia com perfeição, ao mesmo tempo.
    Por fim, Gemima suspeitou que o poço revelava o seu futuro. Tão somente suspeitou porque ainda não acreditava na beleza daquela imagem.
    Gemima ficou atenta aos detalhes. A moça alva era tão delicada quanto  a porcelana, os lábios carnudos de um vermelho suave como  o da tulipa. A pele era aveludada como a pétala da rosa, com sardas sutis nas maçãs do rosto que a deixavam ainda mais bela. Uma beleza delicada, como Gemima nunca vira.
    Tocava na própria face, para que a moça também tocasse. Encarou o reflexo por horas. Fez todas as caras tortas que lembrou e a moça continuava linda.
    Muitas horas depois, Gemima deixou o poço, surpresa com seu futuro, acreditando que seria exatamente como naquele reflexo quando completasse dezesseis anos. Era a idade das moças mais bonitas que ela vira na escola. Pensou em chamar o avô e mostrar-lhe o poço. Queria ver a reação dele.
    Gemima desviou o olhar. Pensou ter visto um rosto, alguém vestido numa capa suja, entre as árvores. Voltou os olhos na direção da sombra. Notou apenas uma sebe escurecida e mal cuidada, que a própria natureza moldara na forma de uma velha com uma corcunda.
    O lugar ficou íngreme. Gemima caminhava no sopé de uma montanha. Lembrou-se que o avô contara, certa vez, que suas terras se estendiam para além daquele monte. Ficou receosa em continuar. Ouviu o avô falar sobre lobos e ursos. Contudo, decidiu caminhar um pouco mais, até a árvore mais frondosa que podia ser vista de longe.
    Aquela era uma nogueira. Tinha o aspecto de uma. Era uma árvore robusta, a maior daquela região e talvez a mais antiga. Cinco homens não seriam suficientes para abraçá-la.
    Ficou admirada, pois naquela majestosa árvore, havia uma pequena porta. Era diminuta, mas de tamanho suficiente para que um homem a atravessasse. Rostos de crianças foram esculpidos na madeira escura. E bem no meio dela, destacava-se uma bonita aldrava em forma de javali.
    Ia tocar na porta, no intento de abri-la, quando o javali de metal tomou vida:

 Debaixo dessa nogueira
Atrás desta velha porta
Esconde-se um tesouro
O ouro da Moura Torta!

    A menina cambaleou. O javali de bronze havia cantado, admirando-a com aqueles olhinhos metálicos! Curiosa, Gemima voltou a se aproximar. Será que tinha ouvido bem? O javali dissera Moura Torta?
    Ouviu o barulho de asas e algo pontiagudo feriu sua cabeça. O sangue escorreu pela fronte. Usou os braços para se proteger. O vulto branco a atacou de novo.
    Uma coruja usava as garras para machucá-la. Gemima buscou um galho no chão e acertou a asa da coruja com toda a sua força.
    A menina correu colina abaixo, olhando para cima até ter certeza de que o pássaro havia ido embora.
    Quando chegou no casarão, nada contou ao avô.  Ajeitou-se e escondeu o ferimento da cabeça com os próprios cabelos.
    No jantar, o silêncio caiu entre eles. Gemima tentou iniciar alguma conversa, mas o avô mostrou-se triste, às vezes titubeante, e falou muito pouco, como se esperasse uma visita desagradável a qualquer momento. Por fim, apenas dois desconhecidos engoliram o cozido de bacalhau.
    Quando terminaram, o avô pediu que a neta fosse logo dormir. Gemima sentiu que ele não a queria ali. Talvez quisesse escondê-la, ou se livrar dela.
    Gemima subiu para o quarto, e como fizera muito esforço durante todo o dia, logo pegou no sono. Teve sonhos embalados por uma voz fria, distante.
    No meio da noite, acordou sobressaltada com os ruídos das árvores que batiam na janela entreaberta. Levantou-se devagar. Ao tentar fechar a vidraça, imediatamente prendeu a respiração, enrijecendo o corpo.
    Uma coruja branca se espremia bem quietinha no peitoril da janela. A mesma coruja que a machucara perto da nogueira.
    Gemima deu um passo para trás. O piso de madeira rangeu. A coruja meneou de forma graciosa a cabeça; os olhos grandes piscaram, atentos à menina. A ave mantinha uma das asas encolhidas, o que sugeria um ferimento.
    Mal ela torceu o nariz, em seguida a coruja não estava mais lá. Seu encontro com o pássaro havia sido rápido. Ouviu apenas o ecoar de um pio.
    Todavia, outra coisa lhe instigou muito. O som de vozes no meio da noite:
    ― Ela tem a mim! Nunca ficará sozinha. ― murmurou alguém.
    ― Estás em dívida comigo... Sou serva de Mefistófeles ― disse a outra voz, mais ameaçadora.
    Gemima viu sombras.
    ― Poupe a voz. O momento não é propício ― alguém falou em tom temeroso.
    ― Cumpre o pacto, ou a doença voltará! Desta vez, pior que antes. Portanto, dê-me a menina! ― ordenou uma voz grosseira.
    Lamentos abafados de dor ecoaram sutis na noite. Depois, uma gargalhada terrível a assustou. Gemima fechou a janela, intrigada. Achou por bem não despertar o avô. Poderia ser apenas uma discussão entre os vizinhos ou entre trabalhadores noturnos. Então, voltou para os lençóis mornos da cama e dormiu ao som de uma voz envelhecida que cantava distante.

IV

    De manhã, o avô nada falou e também não comeu. Seu semblante abatido piorava, além disso, estava meio corcunda, e um pouco sujo. Gemima não fez perguntas sobre nenhum tipo de assunto.
    Se não fossem as descobertas intrigantes, as férias em Portugal teriam sido monótonas na presença daquele velho estranho, que nem a encarou quando ela saiu pela porta.
    Mesmo com o sol primaveril, o amanhecer serenava. Ela passou pelo jardim, voltou à nogueira, aproximando-se do javali de bronze. A coisa de metal esverdeado não cantou desta vez.
    Gemima mostrava-se mais atenta e audaciosa que no dia anterior. Observou melhor a porta da nogueira, agora atenta às formas abomináveis de crianças chorosas de dor, esculpidas como moldura. No centro da porta, abaixo do javali, o mesmo símbolo da serpente e do triangulo quase apagado.
    Gemima girou a maçaneta. Ouviu algo estalar como uma ratoeira atrás da porta.
    Um pouco de luz cortou o negrume de dentro da nogueira oca. A claridade do lado de fora iluminava o recinto arredondado, do tamanho de um pequeno quarto oval.
    Gemima entrou a passos lentos, atenciosa às inúmeras prateleiras repletas de potes ocres.
    Lembrou da canção do javali. Mas onde estava o tesouro? Só restara um monte de sujeira e teias de aranhas naquele lugar, além de uma cadeira de cedro no meio do recinto e, lá no fundo, um baú.
    Numa estante entalhada, livros empoeirados jaziam numa pilha circunscrita. Gemima pegou um dos livros.
    Naquele, em especial, os detalhes em marfim, couro e escama, impressionavam. O título fora caprichosamente escrito à mão: Contos do Diabo. Gemima sentiu um arrepio. Detalhes de chifres, rostinhos feiosos e contorcidos adornavam a capa antiga. Ao abri-lo, deparou-se com o primeiro conto: “Pele de bode”. Começou a folhear o livro, muito interessada nas ilustrações antigas.
    Paaf! A porta fechou-se num baque violento atrás dela.
    Gemima deixou o livro cair. Girou os calcanhares e ficou atenta ao som que a atemorizava.
     A penumbra caíra sobre o recinto. O ruído de respiração arfante vinha de uma espessa silhueta perto da porta. Era seu avô.
    ― Vovô! Descobri este lugar ainda agora. Veja! Há coisas bem estranhas aqui... Essas poções e livros. O que acha disso tudo?
    O Sr. Vulpino não se moveu. Envolto em sombras, continuou taciturno. Gemima sorriu para ele, mas os olhos astutos do velho não pestanejaram nem com a própria respiração oscilante. O avô curvou a cabeça, as sobrancelhas maldosas, a boca aberta, os lábios sem cor. 
    ― Está tudo bem? ― perguntou Gemima, enfadada com o silêncio do avô.
    Um barulho ribombou na árvore, como o bater de um corpo dentro de um caixão. Gemima moveu a cabeça na direção do ruído. O avô continuou silencioso. O ruído vinha do grande baú nos fundos do recinto.
    ― O que é isso?! O que tem naquele baú? ― perguntou a menina tão desprotegida, já temendo o semblante do velho. 
    O estrépito da batida aumentou, depois do altear da voz de Gemima. A força em seu interior era tão desesperada que o baú sacudia. Gemima ajoelhou-se ao lado da caixa de madeira, usando as mãos para tentar romper, em vão, o cadeado que o trancava.
    ― Não adianta, menina ― falou o avô como se fosse outra pessoa. E expôs o rosto ameaçador sob um pálido raio de luz. 
    Uma voz fraca pediu ajuda. Um murmúrio velado de dentro do baú.
    ― Vamos, vovô.  Precisamos soltar essa pessoa. Alguém está preso aqui dentro. Temos de ajudar ― insistiu Gemima.
    ― Não! ― exclamou o velho, e havia ódio nessa palavra tão curta.
    Gemima estremeceu, afastando-se do baú, encarando a figura decrépita do avô.
    A face do Sr. Vulpino começou a inchar. Olhos medonhos e sanguinolentos a encararam. A estatura do velho diminuiu, definhando tanto que a pele do pescoço e dos braços se enrugou ainda mais.
    Ele pegou Gemima à força antes que ela tentasse fugir pela porta. Levou-a até a cadeira de cedro, forçando a menina a sentar. Sibilou palavras de encantamento, palavras que fizeram a árvore balançar.
    Raízes brotaram do chão, envolvendo e apertando com força os pés pequeninos de Gemima contra os da cadeira. Ela estava presa. Não podia escapar.
    Nunca, em toda a sua vida, Gemima assistira a uma cena tão terrível.
    Unhas grandes e sujas saíram das pontas dos dedos do avô. O velho usou-as para cortar a pele atrás da própria nuca até o pescoço. Então puxou com tanta força a própria pele e de tal forma que ela se desprendeu, enrugando-se disforme e terrível sobre a face.
    Aquela capa mole de carne tinha o interior vermelho-vivo. Puxava-a do próprio corpo como um animal se auto-escapelando, a sangue frio.
    E sim, havia sangue. Sangue sobre um corpo magro, velho e feminino que se contorcia para sair da capa de pele. Os cabelos embebidos em líquido rubro e gelatinoso caíram soltos até os ombros.
    Pele e roupa jaziam no chão. Uma mulher velha mostrava a nudez, deixando de lado a vergonha para encarar Gemima de maneira horrível.
    A menina reconheceu aquele rosto, a pele escura, os dentes feios abaixo do nariz adunco, idênticas à ilustração do livro sobre a Moura.
    ― Detestável! ― gritou a velha com um sorriso satânico, cuspindo-se toda. ― Simplesmente detestável! Não acha?
    Uma gargalhada fugaz espalhou-se por toda Vila da Nogueira.
    Bem devagar, a velha buscou sua capa escura e a vestiu. Tirou do bolso uma chave enferrujada e abriu o cadeado do baú.
    Ao levantar a tampa, Gemima foi tomada outra vez por um imenso pavor.
    ― Entrastes no meu solo, menina. Somente aqui o feitiço prevalece sobre ti. ― disse a velha. ― Tu és o meu tesouro.
    Do baú aberto, levantou-se uma cabeça em carne viva, quase uma caveira, ofegando em ar de súplica.
    ― Perdestes a proteção do zelo do amor. Agora, quebrou-se a magia natural de tua família ― continuou a velha.
    A cabeça, que saíra do baú, tremia como se sentisse frio. As mãos apareceram; depois os músculos e tendões expostos, molhados em sangue.
    ― Foram todos corrompidos pela própria maldade. Pelo coração enganoso. Pelos próprios interesses. ― A velha lembrava uma serpente, ao falar. Tinha o aspecto de uma bruxa.
    Gemima observou a coisa que, devagar, saia do baú. A cabeça tinha uma face irreconhecível. Carregava dois olhos assustadiços, sem pálpebras, sobre uma massa vermelha.
    ― Levanta-te, porco covarde! ― proferiu a velha, brutalmente, em direção ao baú. ― Devia ter te matado aos poucos. É isso que estás a merecer por tua traição. Ou pensas que desconheço do pacote que deste a Evarinta? Aquele dinheiro? ― Ela riu. ― Velho gagá! Acreditas que podes contra minha Sociedade? Tenho seguidores leais. Os séculos me fizeram esperta como a raposa!
    Ela chutou as costelas da coisa esquelética e avermelhada que conseguira sair do baú. No chão, vestiu lentamente sua pele sem vida, gemendo como que torturado. Aquele lamento era a voz do verdadeiro avô de Gemima.
    Vestindo-se da pele por completo, ainda se arrastou pelo chão como um morto-vivo. O esforço enorme o deixou cansado. A grande incisão na nuca precisava ser fechada.
    A pele estava solta, frouxa, principalmente o corte por onde a bruxa saíra. Gemima apertou os olhinhos. Um rosto familiar surgiu naquela pele engelhada.
    A bruxa pegou um punhado de algo semelhante a cinzas dentro de um pote ocre. Então soprou na ferida aberta, bem acima da nuca do velho. Aquilo o sufocou. Ele tossiu, desesperado.
    ― Vovô! ― gritou Gemima, tomada de horror. ― O que você está fazendo com ele?
    Uma fumaça fervilhou onde as cinzas caíram. O velho gemeu mais alto. O corte cicatrizou depressa. O Sr. Vulpino ergueu-se, lânguido e fraco, apoiando-se no baú.
   
    ― Não acredito que teu avô mereça algum tipo de benevolência ― a bruxa disse. ― Entretanto, de uma forma ou outra, ele a conseguiu para mim. Terá minha indulgência.
    Gemima chorava.  As lágrimas se misturavam ao suor de seu rostinho.
    A bruxa pôs as mãos nas costas curvadas, andou um pouco e contemplou o avô da menina:
    ― Diga a ela, Vulpino. Conte a ela o que fizestes! Ó, não queres contar? Então deixa para mim. Lembrarei com agrado.
    O velho sentou-se no chão e negou com a cabeça, murmurando. A escassez de forças não lhe permitia falar mais alto. A bruxa ergueu a fronte e escancarou os dentes negros no que provavelmente era um sorriso.
    ― Há sete anos, teu amado avô descobriu minha sociedade. Selou um pacto comigo. Este velho carregava nas entranhas uma doença sem cura! Sabia que eu podia curá-lo, não é Vulpino? ― Ela o encarou.  ― Ou ao menos  prolongar sua vida até que me desse o prometido. A cura só seria concluída se ele obtivesse a segunda parte do plano. Eu lhe estendi a vida. Um segredo que ele  ocultou de muitos. Contudo, vendeu sua alma a mim. E, agora, finalmente, consegui o meu tesouro!
    Ela riu, batendo palmas.
    Lágrimas molharam a face do Sr. Vulpino. Ele tapou os ouvidos com as mãos, por vezes levando-as até o rosto para esconder o choro.
    De súbito, algo açoitou a porta. Um pio triste, junto ao bater de asas, obrigou a bruxa a abri-la depressa.
    Uma coruja branca rodopiou desvairada para dentro da árvore até pousar no chão coberto de raízes.  O animal levantou a asinha, expondo o sangue ressequido nela.
    ― Afinal, um encontro de traidores! Como vai, Estelita Bringel?  ― A bruxa levantou a coruja pela asa ferida. A ave piou alto e beliscou a mão enrugada da feiticeira. ― Espere, maldita velha ingrata! ― a bruxa resmungou.
    Ela arrancou um longo espinho da cabeça da ave, depois a lançou contra o chão. A coruja piou incessante. Suas asas se estenderam.  Esticou o pescoço, que se tornou desproporcional em relação ao seu corpo. Os olhos  tornaram-se humanos, as penas caíram aos poucos, os cabelos grisalhos cresceram na cabeça. Por fim, uma face de velhinha bondosa, mas triste, era só o que restava.
    A neta gritou pela avó. Depois gritou pedindo ajuda.
    ― Gritos de nada valem aqui, menina! ― zombou a bruxa, a cabeça para o lado, o olhar frio. ― As gerações contam uma enganosa história sobre mim, não é? Deves ter ouvido falar da Moura. Como vês, posso estar torta, mas não estou morta! ― a bruxa gargalhou. ― Durante séculos, mantive-me presa em vários corpos. Muitos foram belos e outros vestidos de feiúra. No final das contas, a face da velhice é a mesma em todos. No entanto, estou viva! Alimentei-me com poções de imortalidade. Agora, não mais necessito. Percebi que a eternidade está na juventude, minha menina. A mim, a morte não seria o pior castigo. Ó, não! Decerto, o preço é maior ao vivermos em um corpo inútil. Todavia, hoje e outra vez se desfará o velho templo.   
    A feiticeira saiu da árvore, de forma que Gemima pode vê-la pela porta entreaberta. A velha acenou com os braços, chamando outros como ela. A bruxa voltou para dentro, escancarando a porta. Pela abertura, Gemima viu que na paisagem distante não existia aquele belo jardim, apenas arbustos secos, árvores mortas e negras. De repente, muitas figuras escuras impediram sua visão
    Dez ou doze velhos adentraram a nogueira. Caminhavam curvados e abatidos. Eram homens e mulheres cujas silhuetas escuras apartavam a luz. Entre eles, a velha Evarinta Ambrósia com sulcos de velhice na face.
    ― Já sabem a força vital do meu encanto. É assim que vivemos durante séculos: a sugar a vida dos pequeninos. Entretanto, desta vez será diferente! ― esbravejou ela para os outros. ― Deixem um pouco para mim. Tenho planos para ela.
    ― Saiam daqui! Malditos sejam! ― ordenou vovó Estelita, deitada no chão, com o ombro e um dos braços feridos. ― Vão embora! Ela não! Ó, Gemima, minha neta, que o teu perdão recaia sobre nós! O que estão a fazer com nossas crianças? Devíamos tratá-las bem, devíamos amá-las e protegê-las ― suplicou a avó, agarrando a capa da bruxa.
    A feiticeira chutou a cabeça da velhinha contra a casca dura da árvore.
    ― Vovó Estelita! ― gritou Gemima.
    A avó admirou a neta com os olhos entreabertos, a boca sangrando. A velha senhora fechou os olhos. A feiticeira contorceu um sorriso.
    ― Bebam desse cálice. Eis o elixir da Absorção ― disse a bruxa, referindo-se à poção dentro de uma taça grande e suja que trazia em suas mãos. Ela passou-a para os outros.
    Velhos e velhas alcançaram a taça, disputando entre si grandes goles que deixavam marcas de saliva espessa na borda. Gemima viu o mesmo símbolo da serpente e do triangulo cravado naquele objeto.
    ― Apenas um pouco já é suficiente, seus imbecis! – a bruxa gritou.
    Todos esperavam a ordem final da Moura. Ela os advertia e ocasionalmente os xingava, caso a desobedecessem.
    ― Preparem-se ― proferiu a bruxa.
    Os velhos de olhares cobiçosos e inevitáveis rugas nos cenhos fizeram um circulo ao redor de Gemima. As unhas cresceram da cor do pus, afiadas e curvas. As dentaduras de alguns se moviam em bocas salivantes. Eles lembravam velhos vampiros. Quanto mais próximos de Gemima, mais atrevidos ficavam.
    ― Velhos senis! Lembrem-se do que eu disse. Ao meu sinal, ireis parar. Se quebrarem o acordo, serão mutilados por meu sortilégio.
    ― Fale a palavra de ordem, nós já sabemos ― retrucou outra velha, cujo disfarce de avô nada mais era que um engodo.
    ― Diga logo! ― insistiu um velho repugnante.
    Todos os outros insistiram.
    ― Está bem ― consentiu a bruxa. Virou-se para Gemima e a contemplou sem piedade ― Nossa vida por tua dor, menina. Suguem-na!
    Antes que a porta se fechasse totalmente, quem estivesse do lado de fora veria um grupo de idosos enfiando as unhas afiadas na cabeça de Gemima.
    Naquele mesmo instante, a feiticeira velhaca declarou:
    ― Quem não pode contra mim, junte-se a mim!
    E a sombra triste do Sr. Vulpino somou-se aos outros.
    Um grito de menina ecoou desde os montes até as colinas longínquas que resplandeciam em oliveiras brilhantes e bem cuidadas. O grito traspassou campos de trigo, casinhas caiadas, riachos no bosque.
    Contudo, as pessoas não podiam ouvi-la, ocupadas em seus afazeres e mais perplexas com coisas banais. Para elas, gritos infantis eram apenas gritos.
    Não tardou para que todos os velhos saíssem daquela nogueira, inclusive um triste Vulpino carregando a esposa nos braços.
    À tarde, aquela porta rangeu outra vez. Da árvore oca, Gemima surgiu exultante. Absorvia o ar com um sorriso travesso na face. Maravilhada, balançou mãos e braços. Entrou numa trilha e, sem querer, pisou num monte de esterco de vaca, afundando um dos pés até a canela.  
    ― Detestável, detestável, simplesmente, detestável! – ela disse.
    Todavia, gargalhou satisfeita com a juventude, pois agora o mesmo e longo caminho pareceu-lhe mais curto.


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1 Em Portugal o mesmo que bisbilhotar, cutucar.